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Procurador critica Senado e prevê “Reclamação” no Supremo

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O procurador da República Ricardo Pael, que atua na defesa judicial e extrajudicial de populações indígenas em Mato Grosso, criticou o Senado pela aprovação do Marco Temporal.

 

Segundo o procurador, como o Senado validou um tema que foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, a medida deverá ser contestada na Corte por meio de uma “Reclamação”.

 

“Então não haveria a necessidade do ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)”, afirmou.

 

Apesar de defender o STF, Ricardo Pael também critica decisão sobre o Marco Temporal. Ele afirma que, embora a tese tenha sido derrubada, o Supremo deixou brechas que desconsideram a importância ancestral e sagrada que as terras têm para os povos originários.

Confira os principais trechos da entrevista: 

MidiaNews – Como o senhor avalia a aprovação do Marco Temporal pelo Senado?

Ricardo Pael – Como uma revanche ao STF (Supremo Tribunal Federal) e à eleição do presidente Lula (PT). Em poucas palavras, o Senado e a Câmara estão tentando colocar em termos legais aquilo que era uma política do governo anterior [de Jair Bolsonaro] e que eles tinham medo de se perder com a devida sinalização das decisões do STF.

É importante ter em mente que o que o Congresso fez vai muito além do Marco Temporal. O Projeto de Lei aprovado autoriza o cultivo de organismos geneticamente modificados em terras indígenas, a mineração, contraria a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) ao dizer que os indígenas não precisam ser consultados, mesmo que sejam impactados por empreendimentos.

O pacote de maldades que compõe esse Projeto de Lei recém-aprovado vai muito além do Marco Temporal.

MidiaNews – O que o senhor quer dizer com “revanche”?

Ricardo Pael – Durante o governo anterior, havia uma promessa de campanha cumprida durante o mandato do ex-presidente [Jair Bolsonaro] de que não haveria demarcação de terras indígenas durante o seu mandato.

Era irrelevante, naquele momento, a existência do Marco Temporal, porque o último ato da demarcação de terras indígenas é a homologação por parte do presidente da República. Como ele [o presidente] havia se comprometido a não fazê-lo, então os setores contrários à demarcação de terras indígenas estavam tranquilos.

A partir do momento que o governo anterior foi encerrado e um novo governo assume com uma pauta oposta, inclusive com a sinalização do STF de que julgaria inconstitucional a tese do Marco Temporal, o Congresso Nacional começou a se mexer para atuar em sentido contrário à postura do novo Poder Executivo e do STF.

MidiaNews – A bancada federal mato-grossense criticou a derrubada do Marco Temporal no Supremo, dizendo que a Corte interferiu em um papel que era do Congresso. O senhor concorda?

Ricardo Pael – Não concordo, porque o STF está se pronunciando em um caso concreto, que é o caso Xokleng [povo indígrna] de Santa Catarina. O STF foi provocado a se manifestar sobre a tese do Marco Temporal.

A grande questão é que o Supremo, por ser uma corte constitucional, profere decisões cujos efeitos vão além do caso concreto e se estendem como parâmetro interpretativo ou como jurisprudência vinculante, se for aprovada súmula.

O STF, no caso do povo Xokleng em Santa Catarina, entendeu que não existe essa vinculação da presença física em 5 de outubro de 1988. A Constituição não prevê isso, não há nenhum dispositivo, assim como não havia nas constituições anteriores ou nas legislações infraconstitucionais qualquer norma condicionando a demarcação da terra indígena a essa data.

O que o STF fez foi dar uma decisão dizendo que a demarcação daquela terra não está condicionada à presença física dos indígenas em 5 de outubro de 1988 no território, porém os efeitos acabam se estendendo para outros julgados como parâmetro interpretativo, já que o STF entendeu, no caso concreto, que a tese do Marco Temporal é inconstitucional.

O STF não legislou, o que ele fez foi interpretar a Constituição, que é a sua função precisa.

A decisão do STF também não ajuda muito. O Supremo disse que não existe uma condicionante de Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas, mas ao mesmo tempo elencou a data de 5 de outubro de 1988 como um elemento relevante para retenção da terra até que os detentores sejam indenizados.

Traduzindo para termos simplórios, o STF disse o seguinte: não existe Marco Temporal, é inconstitucional, mas os indígenas só vão ter direito à terra caso estivessem lá em 5 de outubro de 1988.

Se não estavam, o fazendeiro vai poder ficar na terra até ser indenizado. Mas não tem dinheiro. Os quilombolas sofrem no Brasil porque não há dinheiro no orçamento para a desapropriação de áreas para titulação dos seus territórios.

Esse problema enfrentando pelos quilombolas vai ser estendido às populações indígenas. O que o STF fez foi dar com uma mão e tirar com a outra. Ele deu aos indígenas o direito a seus territórios independentemente de Marco Temporal, mas tirou ao prever a necessidade de indenização prévia caso o requisito temporal esteja preenchido. É contraditório.

Além de outros absurdos. Por exemplo, a possibilidade de o Estado destinar aos indígenas outra área, como se a vinculação dos indígenas com o território fosse uma vinculação simplesmente imobiliária e não ancestral, sagrada.

MidiaNews – Por ser um Projeto de Lei (PL) e não uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), o texto aprovado no Senado estabelecendo o Marco Temporal não dá ensejo a uma nova decretação de inconstitucionalidade pelo Supremo?

Ricardo Pael – Mais do que isso. Por se tratar de um Projeto de Lei em sentido contrário a uma decisão já tomada pelo STF, existe um mecanismo processual chamado “Reclamação”. Então não haveria a necessidade do ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).

Seria possível usar o instrumento Reclamação, que levaria ao STF o conhecimento de que houve o descumprimento de uma decisão anterior dizendo que determinado tema é inconstitucional. Com base nisso, ele [STF] pode suspender os efeitos da lei.

Antes disso, o próprio presidente da República pode, antes mesmo de a discussão chegar ao STF, vetar o Projeto de Lei porque é inconstitucional.

Mas reforço que o entendimento do STF diz respeito ao Marco Temporal. O Projeto de Lei aprovado tem muitas outras questões danosas aos povos indígenas que não estão tendo a devida atenção.

MidiaNews – O senhor considera que a aprovação desse Projeto de Lei põe em risco os indígenas brasileiros?

Ricardo Pael – Com certeza! A condicionante aprovada no caso Raposa Serra do Sol [em Roraima], que deu origem a toda essa discussão do Marco Temporal, era para o caso concreto e dizia respeito a uma situação dali para diante.

O Projeto de Lei cria essa absurda condição da presença física em 5 de outubro de 1988, possibilitando inclusive a revisão de demarcações já concluídas.

Ela não atinge só os processos de demarcação daqui para frente, esse PL permitiria que o Estado brasileiro fizesse uma revisão de demarcações anteriores, já consolidadas.

MidiaNews – Caso o Marco Temporal prevaleça, quantas áreas em Mato Grosso correm o risco de não serem demarcadas?

Ricardo Pael – Não tenho o número de terras em demarcação, mas a forma como o texto foi aprovado, permitindo a revisão de terras já demarcadas, eu diria que todas estão em risco. Abre a possibilidade de que todas as demarcações do país sejam, no mínimo, questionadas.

MidiaNews – Os povos originários podem ter relação com um território mesmo sem estarem nele no dia 5 de outubro de 1988?

Ricardo Pael – Sim. Ao longo do processo histórico de colonização, de expansão de fronteira agrícola, muitos indígenas foram expulsos de seus territórios.

Naquele momento que a Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988, aí eles não estavam lá por questões das mais variadas.

O ministro Alexandre de Moraes, que deu um voto horrível no julgamento do STF [sobre o Marco Temporal], exemplificou muito bem essa questão do povo Xokleng. Tem relatos históricos de extrema violência praticada contra esse povo indígena que impossibilitava que eles estivessem no território. Violência que vai de assassinatos a estupros.

Como você quer que uma comunidade indígena permaneça no território, sendo vítima de tamanha violência? Haja resiliência.

ENZO TRES
DA REDAÇÃO MIDIA NEWS

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