Automutilação: Como ajudar adolescentes que se cortam?

Comuns entre adolescentes, as automutilações preocupam pais e professores. Cortes na pele são uma forma encontrada pelos jovens para lidar com sofrimentos emocionais, mas inspiram cuidados. Para orientar as famílias e educadores sobre o problema, especialistas ligados à Universidade de São Paulo (USP) lançaram um guia com dicas: a mensagem principal é acolher com empatia os sentimentos dos jovens.

A cartilha foi publicada por especialistas em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP. O documento traz indicações de cuidado, abordagem e acolhimento. Entre os pontos de alerta está a relação das autolesões com as redes sociais.

Segundo o guia, a internet expõe métodos e fotos de autolesão, causando um efeito de imitação ou de gatilho para aqueles que estão vulneráveis emocionalmente. “A situação nas redes é perigosa pois pode colocar indivíduos que precisam de ajuda dentro daquele mesmo ambiente”, diz a professora da USP Kelly Graziani Giacchero Vedana.

Jovens ouvidos pelo Estadão atribuem o comportamento de autolesão a vários fatores, mas dizem ver influência do que assistem na internet. “Achava que era só eu que fazia isso, e aí vi outras pessoas (nas redes sociais) e comecei a conversar com elas. Isso foi criando uma bola de neve e me influenciando mais, fui vendo fotos e isso me fazia mal. Descontava em mim e fui piorando”, conta a estudante Maria (nome fictício), de 24 anos, que se corta desde os 13.

O ato de transformar o sofrimento mental em dor física é um comportamento chamado de autolesão: a pessoa machuca a si mesma intencionalmente e de forma repetida sem o propósito de suicídio. As autolesões são mais comuns na adolescência: 23,3% das ocorrências estão na faixa etária dos 15 aos 19 anos, de acordo com dados do Ministério da Saúde de 2021.

Entre os diferentes tipos de autolesão estão as atitudes de se cortar, queimar, bater a cabeça, coçar, socar objetos e impedir cicatrização de feridas. O objetivo principal é lidar com emoções ou suportar dificuldades de relacionamentos sociais. “É a maneira fácil que eu achei para descontar minha raiva, minhas angústias, culpas que eu sinto”, acrescenta Maria.

Aline Conceição da Silva, aluna de doutorado da USP que elaborou a cartilha durante a pesquisa na universidade, explica que o recurso é normalmente utilizado como um alívio, principalmente para aqueles que ainda estão entendendo suas emoções. “A adolescência é o momento em que há vários sentimentos que estes jovens ainda não sabem lidar; eles utilizam da autolesão como um mecanismo para encará-las”, afirma.

Ela, que é especialista em prevenção da violência provocada, esclarece que o comportamento tem a intenção de comunicar um sofrimento, resolver um conflito ou até mesmo ser um meio para evitar o suicídio. Apesar de ser comum entre jovens, a autolesão pode acontecer em qualquer etapa da vida, desde as crianças até os idosos.

Sinais e fatores de risco para a automutilação

 

Desregulações hormonais, desamparo, baixa autoestima, maus tratos na infância, abusos, negligências físicas e emocionais estão entre os fatores de risco para a automutilação. Transtornos mentais, instabilidades na família, falta de amigos, bullying, históricos de suicídios, sentimento de não-pertencimento, violência, vergonha e preconceito também têm influência sobre as autolesões.

A estudante de Psicologia Clara (nome fictício), de 25 anos, conta que as brigas na família e a separação dos pais foram fatores para que começasse a se machucar, aos 11 anos de idade. “Sempre fui uma criança com uma família disfuncional”, diz ela. “De alguma forma coloquei a culpa em mim e comecei a me machucar.”

Segundo especialistas, é importante que família e escola fiquem atentos às mudanças de comportamento, no rendimento escolar e nas relações com parentes e amigos: “É usual que eles tendam a se afastar um pouco mais ou até mesmo postar desabafos nas redes sociais para verbalizar esse sofrimento. Neste ponto está a importância dos amigos, que podem colaborar na percepção desse problema”, explica Aline.

O que fazer em casos de automutilação

 

A partir do momento em que a autolesão é identificada, o primeiro passo é o acolhimento, respeitando a privacidade do jovem e validando seus sentimentos. É importante mudar a crença de que automutilação é feita para chamar a atenção. Também é preciso incentivar o jovem a se expressar, entender os momentos de silêncio e compreender como pretende ser ajudado.

O apoio dos familiares, segundo a cartilha, deve ser mais voltado para os sentimentos do adolescente do que às lesões em si. Isso porque focar exclusivamente nas lesões reforça o comportamento de automutilação. Já a hipervigilância para tentar evitar novas automutilações também pode ter impacto negativo. Restrições excessivas podem gerar sensação de menor autonomia e uma nova carga de estresse nos jovens.

“Depois que reconhecermos a autolesão, devemos buscar ajuda de um profissional de saúde. É muito difícil sabermos que alguém que amamos se machuca, então o cuidado também é levado aos pais e amigos”, explica Aline. No caso de lesões mais graves, a recomendação é acionar um serviço de emergência.

Nos consultórios de Psiquiatria, é comum que os jovens cheguem trazidos pelos pais, desesperados, depois que a família descobriu os cortes, diz a psiquiatra da Infância e Adolescência Jackeline Giusti, coordenadora do Ambulatório de Adolescentes do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP.

“Quando a gente vai avaliar, pode ser uma situação familiar de pais muito exigentes, mas muito frequentemente existe um quadro depressivo associado”, diz Jackeline. A boa notícia é que ao tratar o que causa a dor emocional, a autolesão tende a diminuir. “Às vezes, só de conversar com o paciente, dar nome, dizer ‘olha, você está deprimido, tem tratamento, a gente vai ajudar’ a autolesão já para.”

Veja a seguir como abordar os casos de automutilação:

-Usar tom calmo na comunicação

-Demonstrar preocupação com o bem-estar do adolescente

-Realizar perguntas respeitosas que convidem os filhos a compartilhar seus sentimentos e evitar perguntas invasivas

-Entender que leva tempo para que o adolescente se sinta à vontade para o compartilhamento de emoções

-Não concentrar as conversas nos atos de autolesão, mas nos sentimentos e causadores de estresse que antecipam os atos

-Compartilhar sentimentos sinceros sobre como se sentem diante da automutilação com cuidado para não instigar culpa

-Evitar “resolver” os problemas apresentados pelos jovens, mas colaborar na autonomia do jovem para a resolução dos problemas

-Compreender que “sermões”, acusações e punições não são as melhores formas de provocar mudanças positivas e duradouras

As pesquisadoras ressaltam ainda o papel das redes sociais para coibir a divulgação de conteúdos que encorajam a automutilação. “É importante que tenhamos iniciativas das próprias plataformas para minimizar essas questões, como inserir os botões de ajuda e retirar a visibilidade de conteúdos que causam esse efeito negativo”, ressalta Aline.

Plataformas consultadas pelo Estadão destacam medidas que já são tomadas para evitar que esses conteúdos fiquem no ar. O Instagram, por exemplo, afirma ter regras que não permitem o compartilhamento de qualquer conteúdo que promova suicídio ou autolesão. “Também não permitimos conteúdo relacionado a métodos, materiais e conteúdo ficcional que use desenhos ou memes para encorajar ou mostrar representações de suicídio ou autolesão. Esse tipo de conteúdo é removido assim que é identificado.” No primeiro trimestre de 2022, a plataforma agiu sobre 5,1 milhões de conteúdos relacionados a suicídio e autolesão no Instagram.

Mitos e verdades sobre a automutilação

 

Mito: Comportamento é para chamar atenção

Verdade: A automutilação pode sinalizar sofrimento emocional que realmente necessita de cuidado

Mito: É um comportamento típico da adolescência e passa com o tempo

Verdade: Comportamento tem repercussões físicas e emocionais potencialmente duradouras e necessita de acompanhamento profissional e uma rede de apoio

Mito: É preciso usar violência para interromper a automutilação

Verdade: Punições e violência podem retroalimentar o sofrimento emocional, levando à intensificação das autolesões

Mito: Geração anterior era mais madura e capaz de lidar com problemas

Verdade: Cada geração enfrenta contextos distintos; não fazer comparações é respeitar o sofrimento do outro

Mito: A família é responsável pela ausência de educação e limite do adolescente

Verdade: As automutilações têm múltiplos fatores; não é possível atribuir culpa a alguém

Mito: A automutilação é uma tentativa de suicídio que não deu certo

Verdade: A autolesão não tem intencionalidade suicida, mas pode ocorrer concomitante ao comportamento suicida. É preciso avaliação de risco e acompanhamento profissional

Como buscar ajuda para pessoas que fazem automutilação

 

Para ajudar pessoas que fazem automutilação, o SUS tem uma rede de atenção psicossocial. As pessoas podem buscar na Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima de sua casa, de forma gratuita; o Centro de Valorização da Vida (CVV) é um serviço voluntário de apoio emocional que atende de forma gratuita aqueles que precisam conversar. O atendimento é feito pelo telefone 188, pelo e-mail e chat no site 24 horas todos os dias.

Há ainda cartilhas de primeiros socorros em saúde mental para acolher pessoas em crises emocionais e o canal “Pode Falar” com atendimentos para pessoas de 13 a 24 anos. Em caso de postagens criminosas que influenciam comportamentos de autolesão ou suicidas, é possível denunciar na plataforma SaferNet.

 

 

 

Por; Estadão Conteúdo