Detecção de bactérias resistentes a remédios cresce no País
A detecção de bactérias resistentes a antibióticos triplicou no Brasil durante a pandemia de covid-19. Os dados são do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O órgão é referência nacional na vigilância das chamadas superbactérias. Além do crescimento no número de amostras desses microoganismos, houve aumento da sua resistência a remédios. Isso é ainda mais preocupante. Quer dizer que, cada vez mais, os medicamentos disponíveis contra as bactérias não funcionam.
O processo tem sido acelerado pelo consumo excessivo – e muitas vezes incorreto – de remédios na pandemia. O aumento dessa resistência, porém, não é um problema apenas brasileiro. É uma ameaça global. A capacidade de tratar infecções é considerada uma das maiores conquistas da medicina moderna. Agora, está sob ameaça.
Em 2019, o laboratório da Fiocruz recebeu cerca de mil amostras de superbactérias de diversos estados para análise aprofundada. Em 2020, primeiro ano da pandemia, o número passou para 2 mil. Já em 2021, apenas de janeiro a outubro, já são mais de 3,7 mil amostras confirmadas. É um aumento de mais de três vezes sobre o pré-pandemia. As infecções causadas por superbactérias geralmente são associadas à alta mortalidade.
“Durante a emergência sanitária provocada pela covid-19, houve um aumento significativo no número de pacientes internados em estado grave e por longos períodos, que apresentam maior risco de infecção hospitalar”, afirmou a chefe do laboratório, Ana Paula Assef. “Também houve aumento no uso de antibióticos, o que eleva a pressão seletiva sobre as bactérias. É um cenário que favorece a disseminação da resistência, agravando ainda mais um problema de alto impacto na saúde pública.”
O infectologista Ésper Kallas, do Hospital Vila Nova Star, da Rede D’Or, é mais otimista. Segundo ele, o aumento é um reflexo direto do crescimento do número de pacientes internados por causa da covid. Deve cair tão logo a pandemia termine, avalia.
“Os sistemas de saúde ficaram sobrecarregados por conta do número de pacientes graves; muitas UTIs tiveram que se multiplicar para acomodar pacientes, algumas vezes sem estrutura”, afirma o especialista. “Toda vez que isso acontece, há um aumento de infecção hospitalar, não é surpreendente. Agora que o número de casos caiu, muito provavelmente vamos ver uma redução.”
Mutações aleatórias
As bactérias se multiplicam a cada 20 minutos. Às vezes, sofrem mutações aleatórias. Elas funcionam como escudo contra algum antibiótico. Quando ele é ministrado a um paciente, mata a população de bactérias no organismo. Mas aquelas que sofreram a mutação não morrem, se multiplicam. Criam assim uma nova linhagem e não são afetadas pelo remédio.
Esse é o mecanismo básico de desenvolvimento de uma superbactéria. Algumas são resistentes a determinadas classes de antibióticos. Mas outras são imunes a todos. Drogas da década de 50, que haviam sido abandonadas por causa de efeitos colaterais, voltaram ao arsenal médico para enfrentar as variantes resistentes.
A perspectiva de surgimento de novos medicamentos contra bactérias é muito baixa. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), só existem 43 antibióticos em ensaios clínicos atualmente no mundo. Ao mesmo tempo, são mais de 5,7 mil tratamentos contra o câncer. A pesquisa e desenvolvimento de uma nova droga constituem processo longo e caro. Lançar no mercado um antibiótico que logo cairá em desuso, por causa do avanço das superbactérias, não é economicamente vantajoso para as empresas.
Desafio internacional
O problema é mundial. Segundo a OMS, 700 mil pessoas morrem por ano de infecções por superbactéria. Um estudo do Banco Mundial, de 2015, que se tornou referência, indica que, até 2050, o número anual dessas mortes chegará a dez milhões. Assim, ultrapassará até as mortes por câncer.
Em fevereiro, a OMS lançou um alerta. Pediu que “a crise da covid-19 não se transforme em uma catástrofe de resistência aos antimicrobianos”. Mais recentemente, a organização criou um painel de cientistas. Quer assim identificar quais antibióticos são essenciais para a saúde humana. O objetivo é “blindar” o seu uso, para que sigam funcionando. Esses remédios são a tropa de elite dos medicamentos.
“Bactérias como Acinetobacter e Pseudomonas são oportunistas, causam infecções em pacientes internados, com saúde debilitada”, explica Ana Paula. “Este já era um grande problema antes da covid-19 e, agora, estamos evidenciando a piora desse quadro.”
E o uso de antibióticos nos hospitais aumentou muito na pandemia. Estudo publicado na Clinical Microbiology and Infection, em abril deste ano, indicou que mais de 70% dos pacientes internados por covid-19 receberam antibióticos. Mas a presença de coinfecções por bactérias foi estimada em apenas 8%. Em agosto, a Anvisa publicou uma nota técnica com orientações para prevenção e controle da disseminação de bactérias resistentes em hospitais durante a pandemia. A nota reforça que antibióticos não são indicados no tratamento de rotina da covid-19. Esses medicamentos atuam contra bactérias. Os antibióticos são recomendados somente para os casos em que há suspeita de infecção bacteriana associada à infecção viral.
“Em parte, a alta prescrição de antibióticos nos hospitais durante a pandemia pode ser justificada pelo maior número de pacientes graves internados, que acabam desenvolvendo infecções secundárias e precisam desses medicamentos”, diz Ana Paula. “Porém, o uso excessivo precisa ser controlado para evitar que se impulsione a resistência bacteriana.”
Aumento da resistência
O Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do IOC recebe amostras enviadas pelos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) dos estados brasileiros. Na Fiocruz, essas amostras são estudadas mais detalhadamente. O objetivo é determinar o tipo de resistência apresentada e a que classes de medicamentos.
Nessas análises, foi registrado um aumento da resistência à polimixina. Esse remédio é usado como última opção terapêutica para combater infecções que já não respondem aos demais antibióticos. A proporção de detecção de bactérias A. baumanii (que causa infecções hospitalares) resistentes à polimixina subiu de 2,5% em 2019 para 5,6% em 2021. Em bactérias P. aeruginosa (outra importante causadora de infecções hospitalares), o porcentual passou de 14% para 51%. Entre as enterobactérias, foi de 42% para 58%.
“A polimixina é um medicamento antigo, que não era mais usado por causa dos efeitos colaterais, mas voltou a ser empregado nos últimos anos por causa da resistência aos fármacos mais modernos”, explica Ana Paula. “Como se trata de uma das últimas opções terapêuticas, mesmo um aumento discreto nesse tipo de resistência é preocupante.”
A combinação de mecanismos de resistência também preocupa. Em setembro, a Anvisa divulgou um alerta sobre o registro de casos no Paraná e em Santa Catarina. Eles foram capazes de produzir simultaneamente duas das enzimas que destroem antibióticos da classe dos carbapenêmicos. Em conjunto, as duas enzimas também anulam o efeito do fármaco ceftazidima-avilbactam. Essa droga é usada em hospitais para o combate de infecções.
A nota técnica da Anvisa cita um caso que ilustra como as superbactérias estão associadas a altas taxas de mortalidade. O documento fala de um surto em uma unidade de terapia intensiva em Maringá. Lá, dez pacientes internados com covid-19 foram infectados por bactérias A. baumanii resistentes a antibióticos da classe dos carbapenêmicos. Sete morreram.
Criação de animais
Além da adoção e aprimoramento de medidas para prevenir infecções hospitalares, o combate à resistência depende, sobretudo, do uso adequado dos antibióticos dentro e fora dos hospitais. E também na criação de animais. “Existem bactérias vivendo no nosso organismo, nos animais e no ambiente. Sempre que usamos antibióticos nas unidades de saúde, em casa ou na agropecuária aumentamos a pressão seletiva sobre esses microorganismos”, explica Ana Paula. “Isso acelera a emergência e a disseminação da resistência.”
A pesquisadora frisa que os antibióticos funcionam somente contra bactérias. Não têm efeito sobre vírus. Nem contra qualquer outro microorganismo. “Não se pode tomar antibiótico por indicação de conhecido ou familiar”, alerta. Para o infectologista Victor Cravo, coordenador das Unidades de Terapia Intensiva do Américas Serviços Médicos, é crucial o desenvolvimento de políticas de controle e uso racional de antibióticos.
“Vários estudos mostram que muitos antibióticos usados na dose correta por cinco dias são tão eficazes quanto se fossem usados por 14 dias, mas na maioria das vezes se receita pelo período maior”, afirma. “É preciso usar o antibiótico correto, pelo tempo correto, da forma correta.” Cravo ressalta que a conscientização da população é importante. “Existe um pacto social velado de que o sujeito quando vai ao médico tem que sair de lá com um pedido de exame ou a prescrição de um remédio. Existe uma pressão pela prescrição.” Estão em estudo terapias inovadoras para o combate a bactérias. É o caso de vírus que as matam. Há ainda anticorpos monoclonais, além de estratégias envolvendo a nanotecnologia. “Mas vamos ter que ser mais rápidos que as bactérias”, afirma Ana Paula. “E elas são extremamente velozes.